A primeira bofetada incendiou-lhe o lado esquerdo da cara, sem
ter tempo de perceber de onde lhe caíra.
Isabel ficou paralisada. Olhou
para Paulo, trémula de estupor e de espanto. Viu-lhe um lampejo de fúria no
fundo dos olhos que nunca antes estivera lá. E que esmoreceu logo a seguir. Ele
aproximou-se e tocou-lhe na cara, agora quase carinhoso: “Desculpa, desculpa… não sei o que me deu. Ver o meu primo a olhar
para ti daquela maneira, tirou-me do sério. Descontrolei-me, desculpa…”
Pouco a pouco, ela voltou a
sentir o sangue a correr. Lentamente, permitiu que ele a abraçasse. E deu por
ela a consolá-lo.
Eram onze da noite de um sábado
qualquer, três meses depois da noite de núpcias.
“Se pensas que vais sair comigo, vestida dessa maneira, está muito
enganada! Ou andas à procura de namorado?” O tom de Paulo era uma mistura
de repreensão e de escárnio. Isabel teve vontade de o mandar passear. Mas já
sabia que a tarde estaria arruinada. Foi ao quarto e mudou de roupa. Não queria
discussões por tão pouco…
Eram três da tarde de um Domingo
de Maio e o sol pusera-se 147 vezes sobre o seu casamento.
Nem a deixou pousar as compras. “O que estavas a fazer na esplanada com
aquele gajo?!”, atirou-lhe Paulo do outro lado da mesa da cozinha, onde
parecia esperá-la, com as palavras a rasparem-lhe a cara como pedras. “Qual gajo? Era o João, meu antigo colega
da escola… Encontrei-o por acaso e estávamos só a beber café”, disse
Isabel. Paulo levantou-se. Rosto contraído e olhos semicerrados. No momento
seguinte, Isabel sentiu o que parecia ser uma explosão dentro da cabeça. O
murro acertara-lhe em cheio na têmpora esquerda. “Só a beber café?? Só a beber café?? Achas que sou parvo? Se sei que o
voltas a ver, desfaço-te!”
Isabel correu para o quarto e
fechou-se na casa de banho. Sentou-se na sanita, com as mãos entre a cabeça.
Passados uns minutos, quando se levantou e se viu no espelho, um enorme
hematoma púrpura ameaçava inundar-lhe o olho.
Eram sete da tarde de um sábado
de Setembro e o casamento durava há uma eternidade.
Houve outras tardes e outras
manhãs. Houve noites em que abandonou o corpo, para ser usado, sem vontade.
Houve dias, e semanas, e festas de família e casamentos… em que Isabel ficou
fechada em casa, porque “estava adoentada”. Houve telefonemas de amigos que não
atendeu; mensagens a que não respondeu e que apagava à pressa, para que ele não
as visse; houve desculpas esfarrapadas para faltar aos almoços de Natal.
E houve desculpas e perdões. E
lágrimas, até. E o Paulo a trazer-lhe bombons e rosas, que ela aceitava, com o
lábio ainda inchado.
E houve mais bofetadas e murros.
E mais gritos airados. E insultos. E humilhações.
Houve um dia um casamento. E
promessas de amor. E a lua na ponta dos dedos.
E a seguir um inferno que foi
crescendo. Até ao dia em que Isabel se libertou. Ou não…
Dia 25 de Novembro assinala-se o Dia Internacional
pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Não pense apenas nas 33
mulheres que já morreram este ano, no nosso país, às mãos dos maridos,
companheiros ou amantes. Não pense só nas histórias de facadas e tiros de
caçadeira que vão enchendo os jornais. Pense antes na sua irmã, na sua filha,
na sua prima ou na vizinha da casa ao lado. Talvez se chame Isabel...
Publicado n' A Mensagem de Mora
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